ARY DE MAGALHÃES VIOTTI

Belo Horizonte/MG, 1948

DA ORGANIZAÇÃO HOTELEIRA

Ary de Magalhães Viotti

 

O hotel é um fato de civilização. O problema hoteleiro assume importância quando o desenvolvimento social dá origem a maior mobilidade demográfica, condicionada pelo progresso material e econômico. O hotel moderno transcende esta primeira necessidade de proporcionar abrigo passageiro. Não é uma simples hospedaria. Em última análise o problema hoteleiro se resume em satisfazer duas necessidades de vida, que são fundamentais: a do abrigo e a da alimentação. A satisfazê-las se limitaram, mais ou menos no passado, albergues e estalagens e, talvez, se limite ainda hoje, a maioria dos nossos chamados hotéis. Atualmente, no entanto, não se compreende que os hotéis supram apenas aquelas condições primarias; outras exigências devem ser satisfeitas, que surgiram com o desenvolvimento dos recursos materiais e com a difusão da cultura, do bom gosto e da educação. Passamos, então, da hospedaria para o hotel e surgiu o que podemos denominar de "indústria do conforto". Mas o hotel não é apenas um fato de civilização, é, também, um fato econômico. Destinando-se a oferecer bens e serviços em determinadas circunstâncias ideais, que denominamos "conforto", tem ele que atender duas condições: de ordem material, uma; de ordem psicológica, outra. Sendo a natureza humana essencialmente dualista, exprime-se através de manifestações de ordem material e espiritual. Assim é que qualquer valor econômico deve corresponder a uma necessidade e a u desejo; deve reunir a capacidade de suprir uma falta e provocar um prazer. O hotel deve reunir o útil ao agradável. Essa fórmula deve ser aplicada a dois aspectos da indústria hoteleira, que correspondem às suas duas funções: a de proporcionar abrigo e alimentação. Como aplicá-la ao primeiro, utilizando-a da melhor forma? Bastaria que satisfizéssemos as condições mínimas de simples utilidade, limitando-nos a proporcionar instalações materiais indispensáveis? Evidentemente que não, como assinalamos. Quais, então, os cuidados necessários na criação do ambiente a ser oferecido ao hóspede? Se há problema industrial e comercial de solução difícil, embora equacionado na atualidade por todos os povos, este é o da organização hoteleira. É que esta organização depende de modalidades díspares de especialização técnica, que devem manifestar desde o planejamento da obra idealizada até a sua decoração, montagem e exploração comercial. No planejamento e construção de um hotel deve se exigir, antes de tudo, que ele seja harmonioso em seu conjunto. Harmonia exterior entre a arquitetura e a paisagem que o circunda; harmonia interior entre a decoração e o bom gosto médio do hóspede, entre estilo e bem-estar. Os arquitetos e decoradores devem ser chamados a colaborar com o hoteleiro, levando-lhe o concurso de suas ideais e da sua arte e dele recebendo conselhos especializados, evitando-se, assim, heresias de estilos e erros graves de construção, que influirão, perenemente, no todo da obra. Muito bem pesados devem ser estes fatores, pois enorme influência virão a ter na viabilidade do empreendimento. Quantos estabelecimentos há que são verdadeiros atentados ao equilíbrio urbanístico, alterando profundamente a fisionomia quer panorâmica, quer artística e até histórica do local? Quantos outros que tendo sido construídos de modo a satisfazer certas condições internas de organização estritamente hoteleira pecam largamente quanto a requisitos mínimos de segurança, iluminação, aeração, etc.? Por outro lado inúmeros são os edifícios que destinados a hotéis, não atendem absolutamente àquelas exigências indispensáveis ao bom funcionamento dos seus serviços internos e, particularmente, não levam em conta elementos de ordem psicológica, que somente a técnica hoteleira pode apreciar. Assim é que traçam plantas que, talvez, sob a influência da generalizada modalidade arquitetônica de edifícios de apartamentos, podem ser, sob certos aspectos, perfeitas, mas que falham profundamente se as analisarmos dentro do justo conceito do "hotel". Elementos indispensáveis, do ponto de vista estritamente técnico, vêm a faltar como exemplo: espaço e local para cozinha apropriados a lotação normal e extraordinária do estabelecimento – tendo-se em vista que este serviço deve se contar com os de copas e salas de refeições em proporções relativas ao trabalho de cada uma – locais para a instalação de almoxarifados, devidamente ventilados e isentos de umidade, frigoríficos, padarias, rouparias, lavanderias, copas de serviços nos andares, elevadores diretos e estas copas e demais locais para serviços comuns e especializados a todos os hotéis. Nem só, entretanto, elementos desta ordem podem vir a faltar. Outros, importantes do ponto de vista social, são esquecidos. Um hotel não se pode limitar a oferecer bons quartos e perfeitas instalações sanitárias. Dependências de ordem recreativa e social devem ser previstas, tanto interna como externamente. Mas se deve oferecer seus atrativos, deve ter algo mais que nele não se encontra habitualmente e que virá a construir o seu prestígio mundano. O hotel pode oferecer ambientes mais ricos e luxuosos de que, talvez, a maioria de seus hóspedes desfrute ordinariamente, por concentrar recursos financeiros mais ou menos apreciáveis e por que o proporcionar estes ambientes constitui um dos elementos da exploração comercial. Surge, então, um problema de ordem estritamente psicológica, cuja solução só pode ser dada pela colaboração intima do técnico hoteleiro e do decorador. A exuberância decorativa, o excesso de requintes estéticos, que a fantasia criadora deste último pode idealizar, deve ser temperada pela experiência do primeiro, que lhe indica uma atmosfera do ponto de vista artístico, talvez perfeita, pode chocar os preconceitos estéticos e ferir os hábitos de vida da maioria de seus hóspedes.

Focalizemos agora nosso cometimento sob seu outro aspecto, tendo em vista sua função de proporcionar alimento. Acabamos de analisar o hotel em geral e um dos muitos elementos de atração de que podem dispor. Nenhum, entretanto, sobreleva o que passaremos a discutir. Se se pode afirmar que a modernidade, com o desaparecimento do artesanato e da indústria doméstica, tendo cessado dentro do lar quaisquer atividades produtivas, este se transformou numa unidade exclusivamente consumidora, que se reúne em torno do fogão e da mesa, assumindo, assim, as atividades gastronômicas, em seu recesso, a mais alta importância. Com muito maior razão devemos salientar a importância destas atividades num hotel. Quem o procura, muitas vezes está disposto a fazer pequenas concessões quanto a apartamentos ou quartos, pois as condições de transitoriedade em que os ocupa fazem-no conformar-se com facilidade à situações relativamente incômodas. Raramente, porém, transigirá quanto à comida. A sensação de conforto ou desconforto que proporciona um dado alimento é momentânea, não é o produto de uma utilização continuada de modo que a consciência de transitoriedade possa alterá-la. O bom passadio foi sempre a melhor apresentação dos hotéis e seu maior reclamo. Aliás, seria ocioso insistir sobre a importância da alimentação em nosso processo vital. Convém observar, no entanto, que a ingestão de alimentos obedece a um mecanismo em que podemos distinguir a ação de reflexos hereditários e condicionados. Talvez pudéssemos como fazem certos autores, identificar com a ação destes dois tipos de reflexos a existência de dois instintos diversos: a fome e o apetite; um, se referindo à quantidade e o outro à qualidade dos alimentos. De fato pode se sentir apetite sem se estar com fome. Enquanto esta corresponde exclusivamente a um impulso biológico, é o apetite eminentemente associativo. Daí podermos aplicar a este aspecto da indústria hoteleira o mesmo esquema que aplicamos ao aspecto anterior: o alimento deve reunir a capacidade de suprir uma falta – atual ou virtual – e de provocar um prazer; é ele substancia nutritiva e iguaria; é vivere e acepipe; é ração e manjar. No homem civilizado, vivendo em condições normais, o aspecto associativo e psicológico assume extraordinária importância. Brillat-Savarin dizia a este respeito que o bárbaro devora e o civilizado saboreia. Podemos, pois, assim, distinguir – para argumentar – entre substâncias nutritivas e alimentos. Já se observou, com grande acerto, que o homem é o único animal que não consegue reingerir o seu próprio conteúdo gástrico malgrado conserve ele todo seu valor nutritivo. É que não basta que sejam satisfeitas aquelas condições de ordem material; não é suficiente que aquelas substâncias sejam racionalmente balanceadas para que assumam caráter de alimento; devem-se-lhe juntar qualidades que lhe atribuirão o que podemos chamar de "valor sápido". Ora, o cálculo exato de quantum necessário de proteínas, de hidrato de carbono, de gorduras, de sais e vitaminas, quer ao homem médio, quer a determinado indivíduo, é função que cabe ao médico e, mais particularmente, ao dietólogo. Este, porém, nada poderá fazer e terá seu trabalho completamente invalidado se não for satisfeita aquela condição de desejabilidade; e ela só será obtida com o auxílio do especialista em arte culinária. Assim, mais uma vez, surge o problema da conjugação de esforços de especialistas diversos na consecução do mesmo objetivo. Tal como especialistas diversos na execução do mesmo objetivo. Tal colaboração deveria extender-se hoje, em face das conquistas da ciência a todo campo social, a começar pelos lares, mas muito particularmente se deveria verificar na cozinha dos hotéis pela razão de maior concentração de recursos que as caracteriza, o que lhe permitiria praticá-la com muito mais facilidade. Que vemos, entretanto, entre nós realizados, neste sentido? Não só nos hotéis não cuidam, absolutamente, de proporcionar siquer uma alimentação sadia e variada, como mesmo aqueles requisitos de ordem estritamente culinária não são atendidos. A monotonia e a insipidez dominam os nossos salões de refeições através cardápios mais ou menos enfeitados. Vimos empresa hoteleira focalizada, e um ponto de vista geral, sob seus dois aspectos fundamentais. A atualização daquelas funções, que assinalamos como tais, depende, entretanto, de outro elemento de alta relevância: o pessoal. Sem pessoal habilitado não poderá um hotel, por melhores instalações materiais que possua, proporcionar aquela condição de comunidade e conforto, que devem caracterizá-lo. Não poderá oferecer bom alojamento e, principalmente, boa alimentação, embora disponha de grande reserva de excelentes gêneros. Ora, para as múltiplas e difíceis funções que comportam os serviços hoteleiros desde a gerência até a portaria, das salas de refeições à cozinha, não podem improvisar titulares. A divisão de tarefas é conseqüente especialização que ela exige, supõe uma longa preparação, não só de ordem técnica para aqueles cujas funções tenham caráter acentuadamente material e de ordem predominantemente psicológica para aqueles que estejam em contacto constante e necessário com os hóspedes e público. Se, levando em conta estas exigências, quisermos encarar a situação de nossos estabelecimentos, verificaremos que raríssimos deles apresentarão condições satisfatórias. Pessoal improvisado, com rudimentos escassos de educação, de ensino primário e higiene, sem capacidade para suas funções, revelando, sobre tudo, extrema ausência de tacto nas suas relações com os hóspedes; isto é o que vemos com raríssimas exceções, na maioria dos casos. Até aqui o panorama geral. Mas o gênero de estabelecimento que nos interessa é, em particular, o hotel de turismo, destinado a receber aqueles que procuram nossas estâncias de cura. Trata-se de um tipo especial, cuja conceituação não pode ser a mesma de um simples hotel, cujos problemas máximos, grosso modo, analisamos. Situa-se ele numa zona fronteiriça entre o hotel propriamente dito e a casa de saúde; destinando-se a receber uma classe especial de hóspedes, deveria possuir certas características que distinguem estas diferentes instituições. Não só proporcionar, de modo mais ou menos satisfatório, morada e alimentação, mas, também e especialmente, aquelas condições que possibilitassem aos hóspedes o revigoramento de fôrças e o restabelecimento da saúde que procuram, facilitando-lhes o aproveitamento dos agentes curativos naturais da localidade. Teria, assim, que adaptar-se a esta função específica, quer do ponto de vista das instalações, quer da alimentação, quer do pessoal. Do ponto de vista das instalações, tudo aquilo que já dissemos, quando focalizamos o problema no seu conjunto, deve ser repetido com especial ênfase. Destinando-se a receber fregueses que poderíamos chamar de "hospedes de tempo integral", suas dependências sociais devem merecer particular atenção. Salas de estar, de músicas, jardins de inverno, salões de leitura e dependências para a prática de esportes, etc., devem ser previstas; enfim, deve ele facultar ao hóspede a mais larga margem de distrações, divertimentos e repouso, tendo em conta o que representa o fator psicológico em qualquer processo de recuperação orgânica. Mas, apesar de tudo, com o desenvolvimento do progresso material e sua difusão por quase todas as regiões ditas civilizadas, não é difícil ao turista e, em particular ao gênero de turista que nos interessa, assegurar-se um mínimo de conforto material no que diz ele respeito ao simples alojamento. Quartos e apartamentos, mais ou menos aceitáveis, são encontrados com relativa facilidade. O que não se encontra é alimentação satisfatória. Sob este ponto de vista temos que rever o que já anteriormente dissemos, tendo em mente a extraordinária importância do problema dentro do ambiente a que restringimos. Para isto temos que levar em conta duas séries de fatos. Em primeiro lugar que, para os fins visados, convém distinguir entre alimentação e nutrição. Em segundo lugar, que os que buscam nossas estâncias hidro-minerais se dividem, pelo menos, em duas grandes classes: a dos que procuram apenas distração e a dos que procuram restaurar sua saúde. Isto posto, veremos que o problema assim se equaciona: colaboração do do dietólogo e do técnico culinário e conjugação da cozinha geral e especial. Assim estaremos diante do que podemos chamar de hotel misto de turismo e regime. Bem resolvida esta equação, obter-se-ão os seguintes resultados: 1) conjugação do valor nutritivo e do valor sápido, de quantidade e da qualidade, da importância objetiva e subjetiva do alimento; 2) assegurar-se-á alimentação suficiente e adequada do ponto de vista coletivo, atendo à primeira classe de hóspedes; 3) conseguir-se-á adaptar a técnica culinária às necessidades terapêuticas. Para que isto se consiga, entretanto, certas condições precisam ser satisfeitas, de ordem material umas e de ordem pessoal outras. Assim para que tenhamos alimentos de valor nutritivo, precisamos dispor de especialistas que os racionem mas, ao mesmo tempo, precisamos de satisfatório abastecimento; para que tenhamos pratos apetitosos, cuja ingestão cause prazer, necessitamos de técnicos de cozinha e, igualmente, de gêneros apropriados. Quanto às exigências sobre condições de ordem do pessoal, limitar-nos-emos a tratar exclusivamente do elemento estritamente hoteleiro. Cingir-nos-emos a procurar méis a fim de que o hotel esteja aparelhado a atender as determinações do médico especialista, supondo o problema da assistência médica já resolvido, quer pela clínica particular, quer pela existência de médico interno. Para obter pessoal habilitado, para todos os serviços do hotel e principalmente para a cozinha, o melhor caminho na nossa opinião, seria a criação de escolas técnicas especializadas onde, ao lado do ensino teórico, fosse possível ministrar igualmente o prático. Para isso, melhor local e ambiente não poderia desejar do que o de um grande hotel, em que os alunos pudessem se familiarizar por contacto constante e imediato, com os problemas que digam às suas especialidades. Aliás, várias partes do mundo assim é que se processa este aprendizado, recebendo os melhores estabelecimentos os elementos humanos que neles vão praticar suas especialidades mediante pagamento. Ora, ambientes tais possui o Governo do Estado de Minas apresentando todas as condições para que neles possam vir a funcionar estas escolas. Em seus hotéis, especialmente em Poços de Caldas e Araxá, poderão elas funcionar em condições ideais. Sua própria localização terá a vantagem de facilitar o aproveitamento em seu corpo discente de pessoal radicado na região, considerando-se, ainda, que este pessoal está, já na sua maior parte, habituado ao trato com os forasteiros, o que garantiria de antemão boa possibilidade de êxito nos futuros empregos, evitando-se, ainda desperdícios de tempo e dinheiro. Outro problema ligado à situação geográfica é o da cozinha regional. Tais escolas, com muito mais facilidade, dada a sua localização, poderão empreender no campo da culinária uma obra de grande importância turística e econômica. Não é este um elemento que se deva desprezar, pois tem ele constituído grande fator de atração turística, sendo muitos os países cujos "bureaux" oficiais de turismo têm publicado mapas gastronômicos de seus territórios. As condições de ordem material cifram-se, como vimos, na consecução de um satisfatório abastecimento. Lutam constantemente nossos hoteleiros contra a dificuldade de abastecimento, em particular de legumes, frutas, ovos, verduras e carnes de todo gênero. Esta dificuldade só desaparecerá com a criação de granjas para a produção e de entrepostos. Para isto se torna necessária a intervenção do Estado, quer criando diretamente ou incentivando a criação daquelas granjas através de cooperativas de hoteleiros quer instituindo aqueles entrepostos para a fiscalização dos gêneros.

Ao darmos por encerrada esta dissertação sobre a organização hoteleira, permita-se-nos lembrar a todos os hoteleiros, principalmente àqueles que exploram o ramo referente ao turismo que, ao olhar do turista, com especialidade de turista estrangeiro, o hoteleiro é um embaixador. De suas maneiras, de seu espírito, de seu decoro, dependem a reputação e o prestígio, não só do seu estabelecimento como de sua cidade.Sua responsabilidade é grande. Deverá ter larga prática de boa sociedade aliada ao perfeito conhecimento de seu negócio, negócio que é, como tudo na vida, temporariamente seu, mas que é perpetuamente de sua cidade de seu Estado, de seu País. O Hotel em qualquer parte que se localize, é  um dos elementos básicos de turismo, fonte inexgotável de ouro e de civilização para a grandeza nacional.